Universidade Portucalense – Infante D. Henrique

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Parabéns, Emanuel! 300 anos de vida kantiana

A 22 de abril de 1724 na cidade de Königsberg, no Reino da Prússia, governada por Friedrich Wilhelm I, nascia Emanuel Kant, filho de um artesão de arreios, Johann Georg Kant (1682-1746), convenientemente casado com uma filha de um mestre-artesão do mesmo ofício, Anna Regina Reuter (1697-1737). O primogénito da família que sobreviveu à prova de obstáculos fatais da infância foi uma menina, Regina Dorothea (1719-46). Só cinco anos depois, com o quarto filho, poderá a ansiedade e expectativa dos pais repousar. Cumpriram-se as esperanças tão piedosamente cultivadas: chegou o prodigioso, o sublime, o autêntico primogénito: chamaram-lhe Emanuel – animados pela fé messiânica e pelo acaso feliz… um Almanaque prussiano dedicava o dia a Emanuel.

Haveriam de nascer, posteriormente, a um ritmo mais seguro, outros quatro filhos que chegariam à idade adulta: Maria Elisabeth Kant (casada Krönert) (1727-1796), Anna Loysa Kant (casada Schultz) (1731-1807), Catharina Barbara Kant (casada Theyer) (1731-1807) e Johann Heinrich Kant (1735-1800) que será professor e pastor. Imaginemos o pequeno Emanuel, intensamente sociável, a brilhar no interior desta fratria numerosa. Imaginemos a inteligência de Kant a desenvolver-se com os movimentos dialógicos e dialéticos dos conflitos sócio-cognitivos fraternos. Não é necessário esperar por Hegel, nem por Habermas, para que a racionalidade comunicativa se reconheça, se exprima e se expanda. A subjetividade kantiana só é profundamente crítica, livre e construtiva, porque se constitui como operação inter- e trans-subjetivamente aberta. Os pais pressentiram o terramoto que seria o seu menino-prodígio, mas não viveram tempo suficiente para apreciar plenamente as forças mentais revolucionárias que vibravam no seu “Manelchen” (Manelinho) – somente 1,57m de altura na maturidade (!), ligeiramente mais alto do que um famoso futuro micro-kantiano, J.-P. Sartre (1,53m!), mas bem inferior à estatura do revolucionário anti-kantiano por excelência, K. Marx (1,75m). 

Kant é um dos meus heróis intelectuais: inventor de conceitos, metáforas e neologismos filosóficos; experimentador de novas atitudes céticas e métodos cognitivos (“deduções transcendentais”); destruidor, pacificador e reformador uma incerta guerra, a “metafísica” (que lhe valeu a honra póstuma da inscrição da “Kritik der reinen Vernunft” no “Index librorum prohibitorum” a 11 de junho de 1827); construtor de uma nova arquitetura sistemática do pensável, nos domínio da natureza, liberdade e beleza. A herança de Kant envolve e penetra a tessitura da cultura contemporânea, atingindo núcleos de sentido que Kant não poderia vislumbrar. Com efeito, apesar da sua vinculação à Física de Newton, Kant ajuda-nos a pensar os paradoxos da mecânica quântica; apesar da sua inscrição prussiana e eurocêntrica, Kant ajuda-nos a pensar o valor (ou mesmo a “necessidade”) de construções jurídico-políticas transnacionais e globais; apesar da sua biologia pré-evolucionista, pré-genética e pré-molecular, Kant ajuda-nos a pensar a unidade auto-organizadora da vida; apesar da sua imersão estética nos sentimentos do belo e do sublime, Kant ajuda-nos a pensar o sem-sentido dos Dadaísmos, surrealismos e conceptualismos, incluindo a célebre porcelana de Duchamp…

Kant não é um dos meus heróis morais, como Madre Teresa ou Mahatma Ghandi. Acabei de ler a mais respeitada biografia de Kant na atualidade, obra da autoria de M. Kuehn, e posso confirmar que não encontrei nenhum episódio de vida, nem nenhum hábito neo-estóico, dignos de especial admiração moral, incluindo a lendária pontualidade, cuja função é amiúde intimidar ou embaraçar os humanos flexíveis, tolerantes e, por vezes, retardatários. Todavia, confesso um especial estímulo moral quando medito a terceira fórmula do imperativo categórico, a designada fórmula da humanidade, que, retomando a distinção ciceroniana entre pessoa e coisa, propõe uma quasi-sacralização da ideia de humanidade com a respetiva obrigação incondicional de nunca confundir pessoas e coisas. Todo o mal se resumiria, portanto, à reificação ou coisificação ou instrumentalização de pessoas por pessoas, isto é, à redução da dignidade absoluta a qualquer preço relativo, ou à degradação de fins-em-si-mesmos em meros meios. Tudo o que há de inspirador e de promissor na Declaração Universal dos Direitos Humanos está aqui condensado.

Hoje, frustramo-nos, porém, com diversas dimensões do kantismo e recusamos-lhe que seja para nós um farol moral perfeito, pois há intermitências sombrias na projeção da sua luz. De facto, Kant é contemporâneo de Olympe de Gouges e de Mary Wollstonecraft, mas repete as ironias misóginas estereotipadas sobre a sensibilidade feminina e a inteligência masculina. Kant é contemporâneo de C. Beccaria e do Iluminismo Jurídico, mas confirma a sua fidelidade a um direito penal retributivo, ratificando a Lei de Talião e a pena de morte. Kant é contemporâneo da Revolução Americana e da Revolução Francesa, ardendo de “entusiasmo” pelos princípios de igualdade e liberdade, como condições do desenvolvimento moral da humanidade, mas não reconhece qualquer legitimidade ou qualquer direito à resistência e à rebelião, contrariamente a Locke ou Rousseau. Kant é contemporâneo da Revolução Haitiana e da primeira vaga abolicionista da escravatura negra, mas permanece dividido entre o racismo hierárquico e a essencial unidade e igualdade do género humano.

Contudo, encontramos em Kant, uma farmácia abundante de potenciais venenos e de notáveis antídotos, à medida que exploramos o seu laboratório. Tal como as atitudes “marxianas” tendem a negar e superar as posições marxistas, também as operações kantianas podem superar as limitações do próprio Kant e dos kantismos escolásticos. Talvez o mais notável segredo da vitalidade da obra kantiana resida precisamente na virtualidade livre e libertadora, porventura emancipadora, das operações críticas e auto-críticas que podem aplicar-se a todas as matérias possíveis, designadamente os próprios conceitos ou ideais kantianos e pós-kantianos de humanidade, de liberdade, de constituição justa e de progresso da civilização.   

Paulo Renato Cardoso
Docente do Departamento de Psicologia e Educação

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